Tive muita certeza de que habito um corpo brasileiro
Bebericando um prosecco e lembrando que eu tenho um corpo
Os últimos anos foram cruéis conosco que temos corpos. Estar em um corpo vivo custou se esquecer por tempo demais de que o corpo existe. Depois, vê-lo fragmentado em telas pequenas, em quadradinhos ao lado de várias cabeças no Zoom parecia o único jeito de continuar existindo. O medo de que meu corpo se juntasse a outros 600 mil brasileiros debaixo da terra ou àqueles outros tantos em carros militares saindo de Bérgamo, na Itália, fez com que eu apagasse meu corpo da rua para além do necessário.
Tenho colegas de trabalho que nunca viram as minhas pernas. Não sei o jeito de andar da minha analista, não sei que cheiro tem a minha sobrinha, e minha irmã parece ter congelado na minha cabeça como uma adolescente que ela não é mais. Perdi batizados, casamentos, velórios. Estranho toda vez que vejo minha barriga e minhas novas rugas no espelho. É como se, de algum modo, nós tivéssemos aceitado essa condição de sermos só cabeça. E isso já dava trabalho o suficiente.
Na última semana, este corpo que se redescobre em novos exercícios físicos, em contato com a terra e em experiências ao lado de novos corpos se deslocou e sacudiu em diversos meios de transporte para sair de Milão e aparecer em Veneza. A mistura de bonde, metrô, trem, ônibus e barco me sacudiu tanto que ontem, antes de dormir, a cama parecia balançar. E isso era eu sóbria.
A fundação Bienal de São Paulo me convidou para a Bienal de Veneza em sua primeira edição (supostamente) pós-pandêmica. Cecilia Alemani, a curadora da Bienal de Arte de Veneza, lembrou que corpos como o dela já não ocupavam muitos espaços. É a primeira mulher italiana a ocupar o cargo. Seu desejo de mudança fez com que mais de 80% dos artistas enviados ao evento fossem mulheres ou pessoas não-binárias.
Neste novo mundo que coube a ela criar, os homens são minoria. Artistas e reles mortais redescobrem e interpretam juntos como é voltar para o corpo depois de um longo período presos em um sentimento que eu quero acreditar que todos tivemos: o de que nós saímos do corpo e assistimos – incrédulos e em pânico – o que estava acontecendo. Como quando contamos uma história tão bizarra, tão inacreditável, que falamos “Nossa, aquela hora pareceu que eu saí do meu corpo e fiquei olhando a situação toda”.
O tema “O leite dos sonhos”, que acompanha todo o trabalho da Bienal de Veneza, é baseado em um livro de Leonora Carrington, uma escritora surrealista que morreu em 2011, antes de saber que, assim como na sua obra, nós teríamos que reinventar a vida com a nossa imaginação, que nos apoiaríamos na arte e nas lives do Casimiro reagindo a casas milionárias para dar novas formas a uma realidade tão cruel. Eu escrevo como se março de 2020 fosse ontem, mas, neste tempo, até abril de 2022, eu perdi e ganhei peso, perdi e ganhei cabelo, tive e parei de ter anemia e fui me metamorfoseando sem perceber.
Uma visão fragmentada dos nossos corpos, das outras pessoas, das pequenas cenas de tragédias, de visões inéditas neste momento em que parecemos renascer. Tudo isso pareceu espalhado por Veneza, a capital do perrengue chique. Uma cidade que parece um sonho e um pesadelo e qualquer coisa fora do mundo real. Paisagens lindas demais para parecerem reais, deslocamentos em ônibus que na verdade são barcos, corredores muito estreitos misturados a praças muito largas e, sempre de repente, um mar aberto, pessoas em volta falando todas as línguas que, ainda que eu entenda três delas, parece longe de ser suficiente.
Vi americanos procurando por gelato, vi meu guarda-chuva virar do avesso três vezes enquanto eu tentava me localizar no Google Maps, vi dezenas de pessoas pedirem dezenas de “One Aperol, please, grazie”, fiquei enjoada com o balanço do mar, vi um traficante chamar uma cliente de ingrata, conheci uma italiana, uma russa, um carioca, vários brasileiros que se esquecem de que existe mais gente que fala português e ficam ainda mais desbocados no exterior.
Também vi o pavilhão da Ucrânia ser aberto com uma fonte inesgotável de cansaço. Vi um aviso de que peças da mostra não conseguiram chegar da Ucrânia. Vi um pavilhão russo fechado e isolado, assim como o da Tchecoslováquia. Vi um pavilhão feito só de paredes brancas e a mostra era só isso. Vi esculturas tão reais que pareciam que abririam os olhos a qualquer momento, vi crianças brincando de muitas coisas no pavilhão da Bélgica, que me deu uma cerveja grátis. Vi muita crítica social foda, vi um cozinheiro se recusando a me servir um macarrão porque ele já tinha uma comanda longa demais e vi uma tabacaria fechada até as 16h devido ao horário de almoço.
Corte seco e eu estava dentro de uma orelha e pronta para sair por outra. Eram a porta de entrada e de saída do pavilhão do Brasil na Bienal. Jonathas de Andrade, o criador daquilo tudo, não era só minoria entre os artistas homens do evento. Jonathas é um corpo brasileiro como eu, tentando dar forma e sentido como eu em um momento no qual a nossa visão está tão fragmentada e que muitas coisas entram por um ouvido e saem por outro.
Os corpos brasileiros são muito mais do que cabeça, tronco e membros. A exposição “Com o coração saindo pela boca” coleciona expressões brasileiras que envolvem o corpo que parecemos ter perdido e parece engraçada até descobrirmos que é um pouco triste. Como são os corpos brasileiros. Minha nova amiga italiana Claudia, que eu conheci na Bienal, disse que não gostou do Rio de Janeiro porque “são pessoas muito felizes em um lugar que parece muito triste”. Eu senti vontade de defender meu corpo porque quem é ela para falar uma coisa dessas, mas também senti que ela entendeu.
A Claudia me abordou em italiano durante um coquetel de abertura, no jardim do luxuoso Hotel St. Regis, para me perguntar se haveria um discurso do curador ou do Jonathas. Eu achei que a abordagem deixava na cara que eu não pertencia àquele lugar e me defendi falando que “Olha, eu não trabalho aqui, senhora”. Mas ela não estava me atacando. Falei sobre o que já tinha lido sobre a exposição. Expliquei termos como bunda mole, dedo podre, pé na jaca, faca nos dentes, sangue nos olhos, coração saindo pela boca, coração na mão, nó na garganta. Entrar por um ouvido e sair pelo outro.
O Jonathas deixou claro que não dá para esquecer o que um corpo brasileiro significa. Um corpo que carrega o mundo nas costas, que está longe da racionalidade iluminista e fria que a Europa espera da gente. A língua decepada no meio da sala, com o sangue ainda fresco, lembra que meu corpo é da mesma matéria que criou a Belonísia de Itamar Vieira Jr., mesmo que eu não more no Brasil e em lugar algum, mesmo que eu esteja bebericando um prosecco em Veneza às 10 da manhã de uma quinta-feira.
Foi estranhamente satisfatório ver um coração vermelho enorme inflando no meio de uma sala em Veneza. E vê-lo inflando até ficar tão grande que nenhum europeu seria capaz de sair da sala pelos próximos minutos. Nós temos emoções capazes de ocupar uma sala inteira, uma avenida inteira, um bairro inteiro, uma cidade todinha, um país que é um continente inteiro. O país que usou o dedo podre na urna em 2018 e tem uma cabeça de vento que parece que vai cair de repente a qualquer momento sobre os jornalistas e autoridades que circularam pelo pavilhão durante a pré-abertura.
Muita gente entrou por uma orelha do Brasil e saiu por outra nos últimos dias. E muitas mais vão passar até novembro, quando termina a Bienal e quando já teremos passados nossos dedos – podres ou não – por mais urnas eletrônicas. Eu fiquei um tempo olhando para essas pessoas que entravam por um ouvido e saíam por outro. Dando o sentido que elas quiseram. Ou não entendendo nada, como foi o caso da dupla de proprietários de galeria de Bérgamo com quem eu acidentalmente almocei no dia seguinte. Eles me disseram que acharam a exposição bem-humorada, chamaram o artista de “De Andrade”, mas lamentaram que o trabalho não era muito “refinado” porque usava papelão.
A dupla de mãe e filho aproveitou que dividíamos a mesa do almoço e que eu tenho cara de jornalista – seja lá o que isso significa, mas deve ser falta de estilo – para denunciar a situação da arte na Itália. Bebericando taças de vinho, pratos de macarrão com peixe seguidos de um dedo de café frio, disseram que as pequenas galerias estão sofrendo com a crise enquanto o governo apoia programa de residência com artistas ucranianos, quando artistas locais estão em crise. Uma versão artística e – aí sim – refinada da ideia de que estrangeiros roubam empregos de locais.
Eles lamentaram que tantas pessoas tenham morrido em Bérgamo na fase mais aguda da pandemia. Me disseram que as pessoas morriam sozinhas em casa depois de dois dias de febre, ainda que tivessem histórico de atleta. Usaram a expressão “histórico de atleta”. Classificaram Bolsonaro como um “Putin light, menos inteligente”. Também disseram que eu não pareço brasileira porque eu sei falar italiano. Foi a primeira vez que isso aconteceu em dois anos e meio. E eu achei que ficaria orgulhosa quando este dia chegasse porque seria uma espécie de nota 10 na prova, finalmente acertei a pronúncia de quando as letras dobram e apliquei conjugações complexas que nem saberia usar em português. Mas eu fiquei tão triste que fingi que não sabia algumas palavras de propósito. Não sei se vocês viram, mas meu corpo é brasileiro e meu coração é capaz de ocupar esse restaurante inteiro. Eu não sou daqui.
Algumas horas depois, eu fui com a Claudia ao pavilhão da Venezuela ver as pinturas de Palmira Correa, que eu não conhecia até sentir que era uma velha amiga. Suas pinturas coloridas são cheias de imagens aparentemente felizes de Caracas. E elas são sempre povoadas de olhares muito tristes. Eu vi que uma personagem presente em todas as pinturas era a mesma que eu vi sentada em uma cadeira de rodas na frente do pavilhão. Pensei que era impossível andar em Veneza de cadeira de rodas, como parece impossível andar na cidade ainda que eu tenha duas pernas e um par de Adidas molhados. Era a Palmira, que nos chamou para conversar, mostrou sintomas de sua doença degenerativa e respondeu o porquê dos olhares tristes. “É uma coisa que está sempre no meu coração”, ela disse. Eu sei, Palmira. Eu sei.
Isso é de uma sensibilidade tão própria, que se eu não soubesse que era da Thaís, eu saberia que era da Thaís! Vida longa à newsletter porque todos vamos precisar quando tudo isso virar memória...